O La Rica existe há quatro anos e já soma treze ações pela cidade do Rio e duas em Niterói. Ocupou espaços como feiras de frutas, divisas entre bairros e favelas, uma partida de futebol, uma praia, festas populares e particulares, e agora um ônibus e um terminal rodoviário. O coletivo tem uma maneira de agir que vai totalmente contra a ideia da performance que se infiltra em uma paisagem. A meu ver, o La Rica invade a paisagem, parodia aquele contexto e cria uma situação de estranhamento. Esse estranhamento aos poucos vai se amenizando e no final já estão todos dançando, comendo e bebendo.
Vocês poderiam fazer um balanço desses quatro anos de produção, pensando na interação de cada público e sua empatia com as ações?
Ícaro: O projeto La Rica começou um pouco aberto. Tínhamos o desejo da intervenção e da diversão. Este foi um dos únicos pontos claros, deveríamos nos divertir, e assim os outros também ficariam à vontade e interagiriam conosco. Para dar o passo inicial definimos algumas diretrizes: não deveríamos depender de público. Deveríamos ser um anexo. Uma espécie de parasita. Um bom parasita, que fique claro. Percebemos que para que um ambiente fique familiar duas coisas são imprescindíveis: música e comida. A música funciona também como objeto delimitador de espaço. A fronteira.
Com o passar do tempo foi ficando clara nossa intenção/direção. Entendemos melhor como agradar o nosso público incidental e como agir de forma que todos gostassem, não só os amigos. Quem sempre, sempre e sempre interagiu de forma aberta conosco foram os mendigos e as crianças. Virou uma espécie de marca nossa. Nós saímos do nosso contexto, vamos a Niterói, no terminal e lá estão eles. Fica muito claro nos registros.
Tivemos certo cuidado com a escolha dos locais. Que fossem preferencialmente populares. Isso ajudou bastante. Nesses locais a troca é mais fácil. Os populares nos veem com uma boa curiosidade.
Agora, por mais que mudemos de formato, estamos bem definidos. Somos um soundsystem.
André: O mais importante nas intervenções propostas pelo La Rica é mesmo esse sentido de integração que a ocupação sem hierarquia proporciona com a "paisagem" ao redor do que está sendo proposto pela música/comida, que são oferecidas sempre de graça.
A partir de um determinado momento (e isso sempre acaba acontecendo), a exterioridade passa a ser aglutinada por esse organismo dinâmico que as intervenções propõem: sem código de conduta ou vestimenta, de atitude ou de qualquer outra leitura pré-condicionada por quesitos sociais, culturais ou econômicos. O sentido aparentemente "anárquico", na verdade, flerta mais com a integração indiferenciada do que com a hierarquização exclusiva.
De certa forma é um resgate da origem de toda a cultura sonora originada nos soundsystems jamaicanos, que propunha essa diversão sem o que hoje habitualmente vemos ser cobrado nas boates e bailes – como se o fato de alguma coisa ser paga ou hypada como a onda do momento fizesse que ela fosse melhor do que uma diversão que pode ser usufruída gratuitamente. O "estranhamento" a que você se refere talvez venha daí, de que não estamos fazendo clubinhos ou festinhas particulares para ninguém, portanto estamos sujeitos à mesma imprevisibilidade de como a intervenção irá se desenrolar, e nesse sentido até agora temos sido (e feito) todos muito felizes.
O La Rica só tem sentido nesse limite tênue entre o que propomos "aleatoriamente" e como isso é absorvido (ou não) pelo público, que nunca é só espectador, mas principalmente participante.
Maíza: O La Rica faz uma grande brincadeira no espaço público e nessa brincadeira falamos de coisas sérias. Transformamos os lugares de nossas ações em uma grande sala de estar. Acho que o estranhamento de que a Bia fala deve-se ao fato do La Rica transformar o espaço público em um espaço íntimo. Reunimos os amigos, convidamos os transeuntes para dançar, comer e se divertir nas ruas, praças, feiras, ou mesmo em um ônibus, como foi a nossa última ação. Foi muito bacana ver as pessoas pegarem o ônibus na Praça XV e lá dentro encontrar uma grande festa com música, comida e muita diversão.
Sempre temos a preocupação de entrar na fluidez da cidade com sutilezas e cuidados, nos preocupamos com as músicas, com a comida oferecida e mesmo com a identidade visual dos "uniformes" das ações. Nesse sentido, temos consciência das várias identidades que o espaço da cidade pode ter e assim fazermos uma arte realmente participativa.
No último La Rica nos vestimos de motoristas e cobradores para sermos na verdade DJs e produtores de uma festa. Acho bacana essa brincadeira estética. Nos vestimos de feirantes não para vender frutas e legumes, e sim para colocar música para as pessoas fazerem feira.
Acredito que as nossas ações dialogam muito bem com o turbilhão de informações sensoriais que já existe na cidade, tudo que fazemos já existe no universo urbano, os camelôs fazem ações muito parecidas com as que nós fazemos no La Rica, talvez a grande diferença entre nós e o camelô é que nós não somos camelôs, e nesse sentido podemos brincar de camelô, e assim criar as representações do La Rica na vida cotidiana.
Thais: Eu acho que em vários aspectos o que o La Rica faz é uma coisa natural – em termos de festa. Todos os dias passamos por várias situações "La Rica" nas ruas do centro do Rio – churrasquinho, um aparelho de som tocando hits. Parar nesses lariquinhas proporciona, na maior parte das vezes, situações completamente inusitadas e originais. Então, pra mim, o bacana de todas essas festas que fizemos foi viver os dois lados da situação – fazer a festa e estar nela, assim como as pessoas que pintam no La Rica complementando com ideias e coisas parecem estar fazendo o La Rica também, e estão.
Agora, quanto a fazer um balanço, um dos La Ricas preferido para mim foi o da Independência, em 7 de setembro de 2008. Além da festa e de todas as propostas terem dado supercerto, foi tudo muito divertido, aconteceu um "imprevisto" especial. Com a chegada da polícia, percebi uma sutileza de risco da situação que criamos. Porque o fato de a rua ser e não ser um "território" livre, permite que situações "tensas" ocorram revelando vários lados, vários pontos de vista de acordo com quem olha. E foi interessante perceber isso através do La Rica. Parece que esse La Rica, com o nome de Independência – ainda por cima – esticou um pouco os limites. A situação foi a seguinte: as pessoas de um edifício na Glória (Rua da Glória, na esquina que é o ponto dos travestis) reclamaram do barulho e chamaram a polícia. A polícia chegou, os la ricas pediram para apresentar a última atração e então encerraríamos a festa. Só que a última apresentação, seguinte ao show da MC Xuparina que já tinha sido bombástico, era do Solange Tô Aberta, que começou cantando Fuder Freud (não sei qual é o nome dessa música). O polícia – que bebia uma cervejinha para relaxar oferecida pelo André Amaral com muita ironia – sentiu-se completamente insultado, mas teve que sustentar aquilo até o fim. E a galera soltou a franga com o show, foi quase uma catarse libertária liderada pela situação toda.
Para este trabalho no Terminal Rodoviário João Goulart o La Rica propôs uma viagem de ônibus, do Rio para Niterói, na linha 100, que aliás é a grande companheira dos niteroienses pelas madrugadas cariocas – já faz parte da cultura local! (risos). Enfim, achei muito bacana essa sacada de fazer do trajeto de uma cidade a outra parte importante do trabalho, o que também proporcionou a fácil adesão de um público de artistas cariocas. Bacana também foi a possibilidade de veicular o vídeo do La Rica nas TVs que funcionam como espaços publicitários para o Terminal. Com isso a intervenção se fez presente naquele ambiente durante todo o dia.
Como é esse processo de criação entre vocês, tendo em vista que os dois elementos essenciais para o trabalho do La Rica são a música (o soundsystem), que proporciona o clima de festa, e a consciência de propor um diálogo com um contexto específico?
Ícaro: O processo de criação é aleatório: ele surge. De repente alguém tem uma sacada e puxa a cordinha. Daí para frente são séries de reuniões nos lugares mais díspares possíveis. Está bem claro que eu e André comandamos o som. De certa forma todo o resto é definido em conjunto, cada um puxando mais a brasa pro seu lado. André tem formação em artes, eu em design, Thais em antropologia e artes e Maíza é nossa geógrafa de plantão. É muito bom sermos assim, uma esquizofrenia criativa.
O som sempre vem alinhado com o contexto para agregar, não chocar. Na feira da Glória colocamos sons tranquilos, uns mantras para abrir os trabalhos às 8 da manhã seguidos de lindos sambalanços. No Morro dos Tabajaras optamos por usar uns funks e uns hip hops em português. Assim fica mais fácil do público local entrar no nosso trabalho.
André: Mesmo dentro da aleatoriedade inicial, alguma coisa em nosso processo criativo acaba dando certo por tentarmos sempre reverberar algum tipo de ideia ou de associação com o local onde o trabalho está sendo proposto, através da seleção sonora, da identidade visual que renovamos a cada trabalho, nossas roupas, a escolha da comida etc. Isso acaba criando uma identificação inicial com esse contexto do inesperado a que estamos sujeitos quando estamos na rua, mais no sentido da simbiose do que do parasitismo citado pelo Ícaro.
O que acontece depois desse pontapé inicial não está condicionado por um roteiro, já que o trabalho propõe essa liberdade e liberalidade de se usufruir/participar/compreender como cada um quiser, e por isso justamente o formato é difícil de ser transposto como ação para dentro de uma galeria ou de uma festa paga. No final, o que nos resta é esse produto imponderável gerado pelos registros do que aconteceu no dia da intervenção, e é o que vira o resultado do trabalho em si, criado coletivamente por nós e pelos participantes. Isso é a tal "interatividade do espectador", "obra aberta", "obra participativa" que se discute tanto no contexto da arte.
Maíza: Como somos quatro pessoas no La Rica, temos sempre um imenso arquivo de ideias para as ações do coletivo. Já tínhamos em mente fazer uma ação em um ônibus. Com a proposta de participarmos no evento de comemoração do aniversário de Niterói, naturalmente veio o nome La Rica Móvel. Este ônibus seria o 100, teríamos uma vendedora de amendoim, em formato de cone, para distribuir para os passageiros, nos vestiríamos com uniformes de motorista e cobrador de ônibus, levaríamos os amigos artistas para Niterói e entraríamos na rotina dos passageiros do ônibus. E o mais legal foi ter tudo registrado e projetado no terminal de ônibus de Niterói, local em que diariamente circulam milhares de pessoas. Ou seja, uma ideia foi dialogando com a outra perfeitamente.
Sinto que o La Rica está chegando a uma maturidade conceitual e estética, e também que esta maturidade nos aproxima do mais simples e cotidiano. Nesse sentido estamos fazendo uma arte para ser entendida e decodificada por todos.
Thais: Esse La Rica do Sesc, para mim, também foi muito interessante porque tinha aspectos mais elaborados de participação do público. Também foi um evento em que tivemos que pensar como criar uma interação, o que fizemos com as projeções de dentro do ônibus no terminal, para que não ficássemos restritos apenas a quem estava no busão.
A ideia de convidar a Brenda para uma parceria com o La Rica surgiu a partir de sua série fotográfica Bailarinas do Apocalipse, em que ela cria e dirige cenas surrealistas de dois artistas cariocas. O clima inusitado das fotos e a autenticidade dos personagens foram fundamentais para reforçar minha vontade de registros mais autorais das intervenções públicas por parte dos fotógrafos. Sem contar que a ironia e o incomum têm muito que a ver com o La Rica. Queria saber como foi a construção imaginária, por parte da Brenda, desses personagens vindos do universo rodoviário, e como foi para o coletivo ter em conta esse fator – inédito em sua trajetória – de uma ação que se desdobrará em exposição?
Maíza: A Brenda, desde o inicio, fez questão de participar do nosso processo criativo, participou de vários encontros nossos, não como uma antropóloga investigativa, e sim como mais uma artista a fim de realmente estabelecer uma parceria e um diálogo com o trabalho do La Rica. Em vários momentos percebia que ela era mais uma de nós. Conhecia o trabalho dela e sabia que o registro dessa nossa primeira exposição estaria em boas mãos.
Thais: Conheci o trabalho da Brenda, como fotógrafa, com essa série das bailarinas do apocalipse, e, sem rasgação de seda, adorei demais. Sinceramente, a Bia também merece elogios, e todo nosso amor, pois como curadora permite que façamos alguns La Ricas "mais profissionais", além de dar ideias como essa da parceria com a Brenda. Mais do que registro, sabíamos que a Brenda estaria criando ali uma história. Isso de fato aconteceu, e percebemos quando vimos as fotos dela. Percebemos que as situações que ela viu fizeram o La Rica "100" ficar mais interessante. A sintonia foi total e acho que as pessoas vão poder perceber isso. E escolhemos sequências de fotos, porque estava impossível escolher fotos isoladas diante de um material tão bacana. Para mim, ver a exposição com fotos dela é uma parte outra da intervenção, é a intervenção da Brenda no La Rica! E por fim, gostaria de agradecer ao Guga Ferraz, que fez os filminhos durante a viagem.
Brenda: Tentei registrar a espontaneidade do coletivo La Rica e a interação das pessoas que estavam tanto no ônibus como no terminal rodoviário ao ver, ouvir e degustar tudo que era oferecido.
O fato dos quatro membros do coletivo estarem identificados com um uniforme semelhante ao que usam motoristas e cobradores de ônibus enriqueceu esteticamente as imagens e todos que entravam no ônibus, sem aviso prévio, se deparavam com uma verdadeira festa.
Os passageiros e transeuntes do terminal inicialmente pareciam intrigados com o que acontecia, mas ao ver as pessoas que já sabiam do que se tratava dançando e se divertindo, se sentiam convidados a participar também.
A música quebrou o clima de estranhamento, e assim procurei trazer para as imagens a proposta muito interessante do La Rica de descontração e divertimento.