22 de mai. de 2010

conversa com bob n e moiséis alcuña

Quando surgiu o convite do Sesc Niterói para realizar este projeto, logo me lembrei da ideia do Bob N para um trabalho no Campo de São Bento, em Icaraí. Há três anos ele tinha comentado comigo sobre a vontade de recriar uma cena pintada por Johann Moritz Rugendas. Naquela ocasião o trabalho só ficou na vontade e agora nos deparamos com ele novamente. Ao propor a Bob que fizéssemos o trabalho, ele veio com uma contraproposta: ao invés de atuar em parceria com um fotógrafo – como os demais artistas do projeto –, gostaria de dividir a autoria da obra com o artista Moisés Alcuña.
Proporcionar encontros é um dos elementos motivadores de sua produção, não é, Bob? A vontade de agregar outros artistas para uma ação sua ou transformá-los em coautores do trabalho o torna um grande catalisador para especiais acontecimentos. Nesse sentido, o trabalho sempre tem uma boa vibração, una buena onda, como já disse um amigo espanhol.
Este campo das sensações, onde você opera como artista, ao mesmo tempo em que eleva o trabalho a uma relação emocional com o público, portanto de forte impacto em sua fruição, tem como resultado o intangível.
Como é para você esse processo de atingir o afeto alheio e fazer dele a essência de sua obra?


Bob: É sempre surpreendente. Primeiro porque, na verdade, concebo o trabalho visualmente, plasticamente. No começo do meu trabalho eu sempre procurava revestir minhas ideias de uma materialização com força visual, e já há algum tempo eu parto de desejos plásticos. Acho que tudo o que me mobiliza, as questões que quero propor ficam rodando na cabeça e se fazem presentes sem que eu precise colocá-las como enunciado da obra. Daí ao afeto é consequência. Não é uma coisa que se force ou que seja ilustrativa. Nesse momento surge algo maior que a materialidade que o artista realiza, o trabalho desce a um segundo plano de protagonismo; sem que tenha sido feito como cenário, vira cena. Isso é algo que é fundamental para mim, junto com todo o resto, ou seja, os participantes – digo assim porque nessa hora já não há mais espectadores ou artistas, isso se dilui. Talvez esteja aí uma palavra-chave: diluição. O que é trabalho e o que não é. Quem faz parte e quem não faz. Quando o trabalho ganha essa outra dimensão, tudo se dilui, a obra, o entorno... Tudo entorna (risos). Acredito que é o afeto que opera isso.


Moisés, você também tem essa vontade de agregar pessoas, de organizar um evento, uma reunião e fazer disso o seu trabalho. Um bom exemplo é a roda de capoeira que está muito presente em sua obra: você organiza a roda, as pessoas participam como se fosse mais uma roda de capoeira em suas vidas e, por fim, é um trabalho de arte. Esse clima do encontro, da confraternização, também é um elemento que faz o seu trabalho acontecer, porém, no seu caso, esses encontros são, principalmente, entre não artistas. Ao pintar o corpo e o rosto desses capoeiristas com uma simbologia tribal africana e propor a eles que joguem você desperta um sentimento genuíno de pertencimento a toda aquela história (podemos concluir que o mesmo ocorre nos encontros entre artistas promovidos pelo Bob, em que as relações e contextos são fortemente inspirados no campo das artes).
É inegável que seu trabalho traz à tona o debate das tradições africanas que influenciaram tanto a cultura brasileira, porém queria ouvir um pouco de você se este debate se estende a uma posição crítica em relação à situação do negro em nossa sociedade contemporânea e se é consciente entre os participantes de suas ações?


Moisés: Neste trabalho proponho a reflexão da arte que devora as entranhas da cultura e da política, que proporciona a transcendência da história da arte, que se perpetua por várias gerações e à sua própria existência.
Entendo que o que faço é absorver do rito da capoeira, que se estende em grande parte da minha vida, as diversas ações que se propagam na fenomenologia da arte de modo geral, por isso recebo essa dádiva das pessoas que contribuem de forma espontânea, e é nesse momento que desenvolvo o essencial para o acontecer do meu trabalho.
Prossigo, então, com a posição de reflexão da continuidade e da intelectualidade do negro que traz à tona na produção artística possibilidades de compreensão da identidade e da espiritualidade do homem no mundo contemporâneo.
A consciência dos participantes no processo de acontecimento do trabalho foi uma das ações mais importantes para a fluência da energia que conduz à essência do nascimento da arte ali contida.


Nessa intervenção realizada no Campo de São Bento foi muito bonita a transição do trabalho do Bob para o trabalho do Moisés. Mesmo sendo uma ação idealizada e dirigida pelos dois artistas, foi perceptível a passagem de uma obra para a outra. Ou seja, no campo das representações, o quadro de Rugendas foi dando lugar a um ritual tribal africano/brasileiro. A pintura viva que vocês realizaram, as cores misturadas, a luz e o prazer no rosto das pessoas envolvidas foram momentos inesquecíveis. Para mim, um dos grandes momentos do trabalho foi a roda de samba, tão espontânea quanto autêntica.
Qual é a passagem entre a pintura de Rugendas e o ritual tribal? Onde eles se tocam?


Bob: De minha parte eu responderia com as ideias de afeto e diluição que mencionei antes. Entre o Rugendas e a minha proposta tem a História do Brasil, nas questões que o Moisés traz também – por perspectivas diferentes –, e nessa proposta de trabalhar com ele, idem.
Tem uma coisa importante também, que é o fato de eu não trabalhar com interioridades, questões minhas excessivamente subjetivas, então essas propostas são acontecimentos no mundo, para o mundo exterior. Quando convidei o Moisés procurei acrescentar à minha visão uma outra, dar mais organicidade à proposta, e acho que foi aí que acertei, porque o Moisés e aquelas pessoas que ele agregou vivem essa história, não ficam só na imagem...

Moisés: A passagem se dá quando os instrumentos são trocados, atabaque do batuque de ritmos costumeiros das tribos para os berimbaus da capoeira atual, instrumento utilizado na venda de iguarias, frutas, utensílio artesanal produzido pelos próprios no período.