22 de mai. de 2010

conversa com bruno jacomino e rafael adorján

Sua formação é em escultura e sua curiosidade se encontra no campo da eletrônica e da mecânica. Essas são nítidas linhas investigativas em seu trabalho, que possui como caminho de comunicação com o público a experimentação do som. Em grande parte de sua produção o encontro dessas influências proporciona a construção (real ou imaginária) de um outro lugar. Para mim, fica muito visível também a maneira como você instiga a percepção do sentir (ouvir/ver) enquanto matéria palpável. Quando te ouço falar sobre a onipresença do som, imagino instantaneamente como é louco o acordo estabelecido entre o escutar e o ouvir: uma ação não acontece sem a outra, ao mesmo tempo em que se mantêm autônomas.
Como você lida com essa sua necessidade em esculpir espaços e desconstruir o som?


Bruno: Não saberia te responder objetivamente se o que realizo é ou não necessidade ou necessariamente escultórico, mas me agrada a percepção de um trabalho fronteiriço, entre iniciais e limitações, seja sensível ou territorial... Entre o mar e a terra firme (risos)... Entre o vulcão e a água de coco. A realidade imaginada, os filmes “videográficos” e livros dos anos 1980, mostravam um futurismo apocalíptico, como “Fuga em New York”, “Akira”, ou primórdios da robotização, o que se imaginava, o ciborgue, o corpo cirbortizado, como em Neuromancer, Count Zero, sei lá Robocop, Blade Runner, (o fliperama, o atari até os jogos em rede de hoje), a eletrônica popular as revistinhas de eletrônica. De forma lúdica era possível aprender a construir coisas com circuitos “hardware lúdico” e os vídeos-games convertiam visualmente eletricidade em gráficos visuais. As salas de imersão dos jogos eletrônicos, pretendia criar um mundo tridimensional escrito em zeros e uns o “real e o imaginário fantástico” se confundindo, se misturando... Mas apesar dos gráficos dessa época serem toscos eram interpretados, e as sensações eram “as mesmas”. Nos anos 80 se pôde experimentar o futuro anunciando décadas anteriores e vivenciar com mais rapidez os anúncios tecnológicos do futuro, o bum dos X.86, os computados domésticos, lembra? Era caríssimo aqui, eu acompanhei mesmo através de amigos que tinham grana pra ter um computador, nem tinha grana e nem alguém na família que considerasse o investimento importante, nem os bancos tinham essa tecnologia, os norte americanos e os japoneses projetavam tecnologias que chegavam por aqui já obsoletas... guerra fria um mundo subdividido, nós, digo nós habitantes desse planeta “tínhamos armamentos” para destruir o planeta terra (assistíamos os avanços capitalistas, haha! que merda... éramos todos capitalistas, haha! A união soviética era do mau, haha, como ilustravam os HQs... ) a guerra era nas estrelas e a catástrofe seria cósmica, enfim, tudo era fantástico, ficção-científica se misturavam com os acontecimentos e por aí vai. A arte se apropriava dessa estética, a esteira capitalista (muito dinheiro), e o mundo era dividido.
Enfim, isso tudo pra falar dos sentidos, da interferência eletrônica, da internet e da influência que o vídeo, a tv, o cinema, a tecnologia, a nova física /quântica/ciência se misturaram à vida cotidiana... A revolução dos transistores anteriormente, hoje a internet, um mundo...isso tudo passou, a instabilidade mundial já não é mais tão crítica, virou história e formaram-se idéias de mundo e até, mais a fundo, consciência de mundo influenciadas pela produção vídeográfica, etc. Fico otimista quando desmitifica-se a tecnologia, descolada da indústria, sem interesse industriais ou fins. Uma novo maneira um novo jeito de lidar com a tecnologia, existe aí uma aura mística, uma nova contemplação, somos seres “tecnológicos” por natureza... O circuito, a eletrônica (meu avô construía rádio, mas não o conheci) por onde passa esse fluxo isso tudo, tem um ritmo, é música e naturalmente humano, a comunicação, a informação, a freqüência de tudo isso, a audição, sua tridimensionalidade... O som ocupa o vazio ou pode ser colorido, a memória, construir memória, isso é fascinante... Uso o som mais como os cineastas e gosto de fazer música, acho que é por aí...


Em Jurujuba, você propôs um deslocamento do olhar através de um mirante de três metros de altura. Uma paisagem belíssima apreciada de um novo ângulo. Ao subir naquela estrutura inesperada dentro d’água - tão despropositada quanto engraçada (quase como uma cena de filme de David Lynch) - percebia-se que o deslocamento sugerido era de outra ordem. Dois capacetes e uma câmera de vídeo possibilitavam perceber a paisagem através do sentido da audição. Na verdade, mais do que isso, funcionavam como meios para a construção de paisagens auditivas, mesmo quando eram regidas pelo silêncio absoluto.
Confesso, enquanto público, que a sensação que tive ao vivenciar o trabalho foi a de, literalmente, entrar em outra freqüência dos sentidos. Maravilhamento total! (risos).
Você me contou que se inspirou na estrutura do Haikai para a elaboração deste trabalho. Poderia falar um pouco sobre essa influência na obra?


Bruno: Marivilhamento total! Que bom... Ver as pessoas subindo aquela escada e não querendo descer, será que tiveram a mesma reação (risos).
Estivemos lá dias antes e o mar estava coberto de peixe morto, peixe na areia, catástrofe mesmo, cheirava mal, era um lugar feio, porem no dia da construção do trabalho, estava tudo bem diferente, o sol, a areia estava mais branca. Essa coisa dos sentidos, a percepção...o maravilhamento é o corpo todo, é bom saber das sensações, é achar caminho para o que chamamos de espírito, é freqüência, depende do lugar, do clima, luz, temperatura, memórias. O despropositado, o repentino, é engraçado. Pude presenciar as reações, enquanto estabelecidas outros formas comunicativas, construindo pontes e conexões associativas. Gosto da estrutura do haikai e do cinema... Bem citei alguns filmes acima e esqueci de citar Dune – de Lynch - que gosto e é dá mesma época a que me referia... O haikai, sua estrutura de três versos, rápida, me serviu como piloto para realizar o trabalho. Algumas coincidências pareciam mensagens, tinha poesia, como haikais. Essas mensagens materializaram o trabalho. A câmera acoplada no capacete captava imagens enquanto o olhar percorria a paisagem. Eu queria trabalhar com o capacete, mas não sabia como seria esse capacete. O mirante a mesma coisa, mas as respostas vieram em forma de haikais no caminho entre Rio/Niterói... Pontes, platores e plataformas, o porto. O som parece catalisar esses elementos que vou escolhendo.


Rafael: Eu não tinha muita idéia de como o mirante ia ficar, até me deparar com ele pronto. E assim que o avistei, entendi tudo. O que era uma algo que soava abstrato, se transformou em realidade. Tipo: “sim, é possível”. Logo de cara deu pra notar que aquela construção por si, já causaria um impacto real naquele ambiente.
A cena formada do mirante à beira mar, gerou essa atmosfera cinematográfica nonsense a que você se refere, transformando o local prosaico em uma paisagem temporária inusitada. Paisagem esta que gerava uma forte curiosidade. Aos poucos, as pessoas subiram e fizeram a experiência ficar completa, porque ali tinhamos a questão da imagem e também do som. A união desses elementos também criou um ambiente lúdico, principalmente por causa da utilização dos capacetes coloridos, fones, abafadores, que eram condicionais para completude da experiência. Já o haikai, acho que tem a ver com a idéia oriental de contemplação, meditação, e sobretudo, simplicidade, de unir elementos fundamentais, mas de uma maneira sucinta, acessível e bem resolvida. A questão de mirar uma paisagem já nos remete a essa história. Não estamos só vendo, estamos contemplando...

A parceria entre artista e fotógrafo foi levada tão a sério por vocês dois, que antes mesmo de realizar a intervenção o trabalho já estava acontecendo. O processo de reconhecimento do lugar, a interação com freqüentadores daquela praia e a pesquisa de imagens foram defendidas como partes essenciais do trabalho. A atenção cuidadosa com o momento seguinte ao da intervenção, condizente com a proposta curatorial de pensar uma exposição sobre ações públicas que não fosse calcada no simples registro visual, foi um fator determinante para a perfeita afinação entre os trabalhos dos dois.
Queria ouvir de vocês como, de fato, absorveram a idéia de parceria e colaboração e como conseguiram essa organicidade entre os diferentes resultados visuais de um mesmo trabalho?


Bruno: Os locais foram propostos para cada artista, bem diferente da situação criada para um “Tilted Arc”(Richard Serra) por exemplo, onde ele mesmo propõe a instalação de uma peça gigantesca de aço para uma praça especifica, para ocupar exatamente aquele lugar ( isso lá pelos anos 80 também), além do que era para ser “permanente”, enfim...aqui tem a duração de algumas horas, fica algo meio “místico”, não é?...e na concepção... as idéias foram fluindo na medida em que as experiências foram se desenvolvendo. Tudo foi surgindo sem a preocupação se havia ou não possibilidade de realização. Íamos compilando o que ia surgindo. Nada foi pensado anteriormente, tudo foi se desenrolando com o tempo e o tempo individual, o difícil era coincidir as agendas!
Dividimos ateliê já há um bom tempo, acho que isso influenciou bastante também para que o trabalho fosse como foi, que desenvolvêssemos juntos e que os encontros não se restringissem só ao dia da ação. Desde o Vila Longuinhos, que era o ateliê que tínhamos no Morro da Conceição, com mais cinco artistas (no final acho que tinha mais gente até), tínhamos vontade de realizar algo juntos e a oportunidade veio da melhor forma. Temos o interesse pela imagem em comum. Rafael trabalha mais diretamente com a fotografia, o que me fez pensar mais em criar uma situação para o enquadramento, a espacialidade, os véus da imagem e vice-versa.

Rafael: A questão é sutil. O trabalho começa a ser feito a partir do momento em que nos encontramos, mesmo que dali não saia nada definido, idéias começam a ser trocadas, e a coisa vai tendo seus desdobramentos. Vale lembrar que ainda dividimos um ateliê, que é um espaço de convivência, o que facilita as coisas. Ter feito essa espécie de mapeamento do local foi importante, porque além de ser um reconhecimento do local da intervenção, também estávamos ali interessados em nos relacionar com as pessoas para que elas tivessem alguma idéia de que algo “diferente”seria feito ali. Como não nos conheciam, achavam que eramos da imprensa, e estavamos ali para fazer alguma espécie de reportagem de denúncia. Mas esse também foi o mote para as pessoas se aproximarem e iniciarem uma conversa, daí conversavamos sobre o que iriamos fazer. No dia da ação, já não eramos totalmente estranhos naquele local e várias pessoas já nos reconheciam e ajudaram na realização do trabalho. Depois, foram lá tirar a prova dos nove, e subiram no mirante. Ou seja, mesmo sem saber direito, as pessoas entraram no clima porque só subindo para ter noção plena do que se tratava. Em relação à parceria, o trabalho pedia uma pedia uma participação conjunta maior. Tinhamos e estamos tendo que pensar e solucionar coisas juntos, o que já vai além do mero registro fotográfico.