Em 1937 foi construído na praia de Icaraí, na cidade de Niterói (RJ), um trampolim que imitava um pássaro de asas abertas. Uma estrutura de concreto armado edificada na primeira década de arquitetura moderna no Brasil. Durante vinte anos o trampolim de Icaraí integrou aquele cenário, povoando o imaginário de diferentes gerações. Eu mesma não o vi pessoalmente (foi destruído em 1964, por má conservação), mas por meio de fotografias e contos de família o trampolim pertence à minha infância e imaginação.
Inspirado nessa obra – que para mim foi a primeira imagem próxima ao que hoje entendo como intervenção urbana –, o projeto Sentido Niterói tomou forma e conceito. Artistas intervindo na paisagem da cidade e construindo momentos. Ações de curta duração, idealizadas para seus respectivos espaços públicos e que tiveram como ponto comum o enfoque na potência visual e natural de cada lugar. Trabalhos que se faziam perceber ao mesmo tempo em que se tornavam parte de um todo. Silenciosos, divertidos e inusitados, todos pareciam pertencer àqueles ambientes específicos e nada seria mais fiel às obras do que deixá-las existir apenas naqueles instantes. Como apresentar em uma galeria um trabalho concebido para o espaço público? Como não perder a verdade do trabalho nessa transposição de espaço? Como conseguir que o trabalho na galeria se sustente por si só? E, principalmente, como não realizar apenas uma exposição de registros do que já aconteceu?
Pensando nessas questões, propôs-se aos artistas uma parceria de trabalho: suas intervenções seriam documentadas por fotógrafos profissionais que também atuam como artistas visuais, e que teriam liberdade e autonomia em seus registros. As colaborações se deram de diferentes maneiras, umas mais intensas e outras mais pontuais, e o resultado poderá ser visto neste catálogo e na exposição para a galeria do Sesc de Niterói.
Foram quatro intervenções públicas em lugares que integravam a programação do Sesc de Niterói, organizada por ocasião do aniversário da cidade, e selecionados de acordo com cada artista. O Terminal Rodoviário João Goulart, no centro de Niterói, possui o mesmo caos ordenado presente nas ações propostas pelo coletivo La Rica, e a partir dessa simbiose o trabalho foi realizado dentro de um ônibus e no interior do Terminal, com projeção de vídeo e muita música. As belas fotografias em p&b de Brenda Moraes evidenciam o envolvimento da fotógrafa na ação do coletivo e o êxtase de toda aquela situação.
A singularidade do bairro de Jurujuba, com sua colônia de pescadores, pareceu ideal para as pesquisas em áudio elaboradas por Bruno Jacomino, e assim foi, exatamente: uma estrutura de madeira serviu como mirante, de onde se podia apreciar a paisagem através do som e do silêncio. A parceria com Rafael Adorján desde o início foi encarada como uma oportunidade de novos trabalhos. Juntos, eles pesquisaram o local e seus frequentadores praianos para que esse momento anterior à intervenção também fizesse parte da mostra.
O clima bucólico do Campo de São Bento, em pleno coração do bairro de Icaraí, há tempos já era o cenário perfeito para o trabalho de Bob N – um remake da pintura de Rugendas – e aqui, com a parceria de Moisés Alcuña – não só no registro em vídeo, mas também na autoria da obra –, a pintura viva tornou-se roda de capoeira e de samba. Rugendas Reloaded foi um trabalho pensado para ser vídeo e assim será apresentado na exposição.
Por fim, a artista Gabriela Mureb, que vem trabalhando com performances e intervenções em plantas, ocupou o jardim da Praça de São Domingos, no bairro de mesmo nome, fazendo daquele ambiente seu local de experiências. O registro de Joana Cseko privilegiou detalhes e sutilezas da ação, pontuando a beleza e a fragilidade do trabalho.
Sentido Niterói é um projeto que comemora o aniversário de Niterói. As intervenções até que poderiam ter sido feitas para outra cidade ou país – não levaram em conta questões sociais ou políticas específicas desse contexto –, porém foram trabalhos cuidadosos em evidenciar os adjetivos locais e práticas relacionais pertencentes a ambientes comuns como praças, praias e lugares de trânsito. Não se trata de um projeto sobre a cidade de Niterói e sim para uma cidade. Um estudo de espaço, linguagem e comunicação que, por aqui, já se faz presente há mais de setenta anos.
Beatriz Lemos
22 de mai. de 2010
O La Rica existe há quatro anos e já soma treze ações pela cidade do Rio e duas em Niterói. Ocupou espaços como feiras de frutas, divisas entre bairros e favelas, uma partida de futebol, uma praia, festas populares e particulares, e agora um ônibus e um terminal rodoviário. O coletivo tem uma maneira de agir que vai totalmente contra a ideia da performance que se infiltra em uma paisagem. A meu ver, o La Rica invade a paisagem, parodia aquele contexto e cria uma situação de estranhamento. Esse estranhamento aos poucos vai se amenizando e no final já estão todos dançando, comendo e bebendo.
Vocês poderiam fazer um balanço desses quatro anos de produção, pensando na interação de cada público e sua empatia com as ações?
Ícaro: O projeto La Rica começou um pouco aberto. Tínhamos o desejo da intervenção e da diversão. Este foi um dos únicos pontos claros, deveríamos nos divertir, e assim os outros também ficariam à vontade e interagiriam conosco. Para dar o passo inicial definimos algumas diretrizes: não deveríamos depender de público. Deveríamos ser um anexo. Uma espécie de parasita. Um bom parasita, que fique claro. Percebemos que para que um ambiente fique familiar duas coisas são imprescindíveis: música e comida. A música funciona também como objeto delimitador de espaço. A fronteira.
Com o passar do tempo foi ficando clara nossa intenção/direção. Entendemos melhor como agradar o nosso público incidental e como agir de forma que todos gostassem, não só os amigos. Quem sempre, sempre e sempre interagiu de forma aberta conosco foram os mendigos e as crianças. Virou uma espécie de marca nossa. Nós saímos do nosso contexto, vamos a Niterói, no terminal e lá estão eles. Fica muito claro nos registros.
Tivemos certo cuidado com a escolha dos locais. Que fossem preferencialmente populares. Isso ajudou bastante. Nesses locais a troca é mais fácil. Os populares nos veem com uma boa curiosidade.
Agora, por mais que mudemos de formato, estamos bem definidos. Somos um soundsystem.
André: O mais importante nas intervenções propostas pelo La Rica é mesmo esse sentido de integração que a ocupação sem hierarquia proporciona com a "paisagem" ao redor do que está sendo proposto pela música/comida, que são oferecidas sempre de graça.
A partir de um determinado momento (e isso sempre acaba acontecendo), a exterioridade passa a ser aglutinada por esse organismo dinâmico que as intervenções propõem: sem código de conduta ou vestimenta, de atitude ou de qualquer outra leitura pré-condicionada por quesitos sociais, culturais ou econômicos. O sentido aparentemente "anárquico", na verdade, flerta mais com a integração indiferenciada do que com a hierarquização exclusiva.
De certa forma é um resgate da origem de toda a cultura sonora originada nos soundsystems jamaicanos, que propunha essa diversão sem o que hoje habitualmente vemos ser cobrado nas boates e bailes – como se o fato de alguma coisa ser paga ou hypada como a onda do momento fizesse que ela fosse melhor do que uma diversão que pode ser usufruída gratuitamente. O "estranhamento" a que você se refere talvez venha daí, de que não estamos fazendo clubinhos ou festinhas particulares para ninguém, portanto estamos sujeitos à mesma imprevisibilidade de como a intervenção irá se desenrolar, e nesse sentido até agora temos sido (e feito) todos muito felizes.
O La Rica só tem sentido nesse limite tênue entre o que propomos "aleatoriamente" e como isso é absorvido (ou não) pelo público, que nunca é só espectador, mas principalmente participante.
Maíza: O La Rica faz uma grande brincadeira no espaço público e nessa brincadeira falamos de coisas sérias. Transformamos os lugares de nossas ações em uma grande sala de estar. Acho que o estranhamento de que a Bia fala deve-se ao fato do La Rica transformar o espaço público em um espaço íntimo. Reunimos os amigos, convidamos os transeuntes para dançar, comer e se divertir nas ruas, praças, feiras, ou mesmo em um ônibus, como foi a nossa última ação. Foi muito bacana ver as pessoas pegarem o ônibus na Praça XV e lá dentro encontrar uma grande festa com música, comida e muita diversão.
Sempre temos a preocupação de entrar na fluidez da cidade com sutilezas e cuidados, nos preocupamos com as músicas, com a comida oferecida e mesmo com a identidade visual dos "uniformes" das ações. Nesse sentido, temos consciência das várias identidades que o espaço da cidade pode ter e assim fazermos uma arte realmente participativa.
No último La Rica nos vestimos de motoristas e cobradores para sermos na verdade DJs e produtores de uma festa. Acho bacana essa brincadeira estética. Nos vestimos de feirantes não para vender frutas e legumes, e sim para colocar música para as pessoas fazerem feira.
Acredito que as nossas ações dialogam muito bem com o turbilhão de informações sensoriais que já existe na cidade, tudo que fazemos já existe no universo urbano, os camelôs fazem ações muito parecidas com as que nós fazemos no La Rica, talvez a grande diferença entre nós e o camelô é que nós não somos camelôs, e nesse sentido podemos brincar de camelô, e assim criar as representações do La Rica na vida cotidiana.
Thais: Eu acho que em vários aspectos o que o La Rica faz é uma coisa natural – em termos de festa. Todos os dias passamos por várias situações "La Rica" nas ruas do centro do Rio – churrasquinho, um aparelho de som tocando hits. Parar nesses lariquinhas proporciona, na maior parte das vezes, situações completamente inusitadas e originais. Então, pra mim, o bacana de todas essas festas que fizemos foi viver os dois lados da situação – fazer a festa e estar nela, assim como as pessoas que pintam no La Rica complementando com ideias e coisas parecem estar fazendo o La Rica também, e estão.
Agora, quanto a fazer um balanço, um dos La Ricas preferido para mim foi o da Independência, em 7 de setembro de 2008. Além da festa e de todas as propostas terem dado supercerto, foi tudo muito divertido, aconteceu um "imprevisto" especial. Com a chegada da polícia, percebi uma sutileza de risco da situação que criamos. Porque o fato de a rua ser e não ser um "território" livre, permite que situações "tensas" ocorram revelando vários lados, vários pontos de vista de acordo com quem olha. E foi interessante perceber isso através do La Rica. Parece que esse La Rica, com o nome de Independência – ainda por cima – esticou um pouco os limites. A situação foi a seguinte: as pessoas de um edifício na Glória (Rua da Glória, na esquina que é o ponto dos travestis) reclamaram do barulho e chamaram a polícia. A polícia chegou, os la ricas pediram para apresentar a última atração e então encerraríamos a festa. Só que a última apresentação, seguinte ao show da MC Xuparina que já tinha sido bombástico, era do Solange Tô Aberta, que começou cantando Fuder Freud (não sei qual é o nome dessa música). O polícia – que bebia uma cervejinha para relaxar oferecida pelo André Amaral com muita ironia – sentiu-se completamente insultado, mas teve que sustentar aquilo até o fim. E a galera soltou a franga com o show, foi quase uma catarse libertária liderada pela situação toda.
Para este trabalho no Terminal Rodoviário João Goulart o La Rica propôs uma viagem de ônibus, do Rio para Niterói, na linha 100, que aliás é a grande companheira dos niteroienses pelas madrugadas cariocas – já faz parte da cultura local! (risos). Enfim, achei muito bacana essa sacada de fazer do trajeto de uma cidade a outra parte importante do trabalho, o que também proporcionou a fácil adesão de um público de artistas cariocas. Bacana também foi a possibilidade de veicular o vídeo do La Rica nas TVs que funcionam como espaços publicitários para o Terminal. Com isso a intervenção se fez presente naquele ambiente durante todo o dia.
Como é esse processo de criação entre vocês, tendo em vista que os dois elementos essenciais para o trabalho do La Rica são a música (o soundsystem), que proporciona o clima de festa, e a consciência de propor um diálogo com um contexto específico?
Ícaro: O processo de criação é aleatório: ele surge. De repente alguém tem uma sacada e puxa a cordinha. Daí para frente são séries de reuniões nos lugares mais díspares possíveis. Está bem claro que eu e André comandamos o som. De certa forma todo o resto é definido em conjunto, cada um puxando mais a brasa pro seu lado. André tem formação em artes, eu em design, Thais em antropologia e artes e Maíza é nossa geógrafa de plantão. É muito bom sermos assim, uma esquizofrenia criativa.
O som sempre vem alinhado com o contexto para agregar, não chocar. Na feira da Glória colocamos sons tranquilos, uns mantras para abrir os trabalhos às 8 da manhã seguidos de lindos sambalanços. No Morro dos Tabajaras optamos por usar uns funks e uns hip hops em português. Assim fica mais fácil do público local entrar no nosso trabalho.
André: Mesmo dentro da aleatoriedade inicial, alguma coisa em nosso processo criativo acaba dando certo por tentarmos sempre reverberar algum tipo de ideia ou de associação com o local onde o trabalho está sendo proposto, através da seleção sonora, da identidade visual que renovamos a cada trabalho, nossas roupas, a escolha da comida etc. Isso acaba criando uma identificação inicial com esse contexto do inesperado a que estamos sujeitos quando estamos na rua, mais no sentido da simbiose do que do parasitismo citado pelo Ícaro.
O que acontece depois desse pontapé inicial não está condicionado por um roteiro, já que o trabalho propõe essa liberdade e liberalidade de se usufruir/participar/compreender como cada um quiser, e por isso justamente o formato é difícil de ser transposto como ação para dentro de uma galeria ou de uma festa paga. No final, o que nos resta é esse produto imponderável gerado pelos registros do que aconteceu no dia da intervenção, e é o que vira o resultado do trabalho em si, criado coletivamente por nós e pelos participantes. Isso é a tal "interatividade do espectador", "obra aberta", "obra participativa" que se discute tanto no contexto da arte.
Maíza: Como somos quatro pessoas no La Rica, temos sempre um imenso arquivo de ideias para as ações do coletivo. Já tínhamos em mente fazer uma ação em um ônibus. Com a proposta de participarmos no evento de comemoração do aniversário de Niterói, naturalmente veio o nome La Rica Móvel. Este ônibus seria o 100, teríamos uma vendedora de amendoim, em formato de cone, para distribuir para os passageiros, nos vestiríamos com uniformes de motorista e cobrador de ônibus, levaríamos os amigos artistas para Niterói e entraríamos na rotina dos passageiros do ônibus. E o mais legal foi ter tudo registrado e projetado no terminal de ônibus de Niterói, local em que diariamente circulam milhares de pessoas. Ou seja, uma ideia foi dialogando com a outra perfeitamente.
Sinto que o La Rica está chegando a uma maturidade conceitual e estética, e também que esta maturidade nos aproxima do mais simples e cotidiano. Nesse sentido estamos fazendo uma arte para ser entendida e decodificada por todos.
Thais: Esse La Rica do Sesc, para mim, também foi muito interessante porque tinha aspectos mais elaborados de participação do público. Também foi um evento em que tivemos que pensar como criar uma interação, o que fizemos com as projeções de dentro do ônibus no terminal, para que não ficássemos restritos apenas a quem estava no busão.
A ideia de convidar a Brenda para uma parceria com o La Rica surgiu a partir de sua série fotográfica Bailarinas do Apocalipse, em que ela cria e dirige cenas surrealistas de dois artistas cariocas. O clima inusitado das fotos e a autenticidade dos personagens foram fundamentais para reforçar minha vontade de registros mais autorais das intervenções públicas por parte dos fotógrafos. Sem contar que a ironia e o incomum têm muito que a ver com o La Rica. Queria saber como foi a construção imaginária, por parte da Brenda, desses personagens vindos do universo rodoviário, e como foi para o coletivo ter em conta esse fator – inédito em sua trajetória – de uma ação que se desdobrará em exposição?
Maíza: A Brenda, desde o inicio, fez questão de participar do nosso processo criativo, participou de vários encontros nossos, não como uma antropóloga investigativa, e sim como mais uma artista a fim de realmente estabelecer uma parceria e um diálogo com o trabalho do La Rica. Em vários momentos percebia que ela era mais uma de nós. Conhecia o trabalho dela e sabia que o registro dessa nossa primeira exposição estaria em boas mãos.
Thais: Conheci o trabalho da Brenda, como fotógrafa, com essa série das bailarinas do apocalipse, e, sem rasgação de seda, adorei demais. Sinceramente, a Bia também merece elogios, e todo nosso amor, pois como curadora permite que façamos alguns La Ricas "mais profissionais", além de dar ideias como essa da parceria com a Brenda. Mais do que registro, sabíamos que a Brenda estaria criando ali uma história. Isso de fato aconteceu, e percebemos quando vimos as fotos dela. Percebemos que as situações que ela viu fizeram o La Rica "100" ficar mais interessante. A sintonia foi total e acho que as pessoas vão poder perceber isso. E escolhemos sequências de fotos, porque estava impossível escolher fotos isoladas diante de um material tão bacana. Para mim, ver a exposição com fotos dela é uma parte outra da intervenção, é a intervenção da Brenda no La Rica! E por fim, gostaria de agradecer ao Guga Ferraz, que fez os filminhos durante a viagem.
Brenda: Tentei registrar a espontaneidade do coletivo La Rica e a interação das pessoas que estavam tanto no ônibus como no terminal rodoviário ao ver, ouvir e degustar tudo que era oferecido.
O fato dos quatro membros do coletivo estarem identificados com um uniforme semelhante ao que usam motoristas e cobradores de ônibus enriqueceu esteticamente as imagens e todos que entravam no ônibus, sem aviso prévio, se deparavam com uma verdadeira festa.
Os passageiros e transeuntes do terminal inicialmente pareciam intrigados com o que acontecia, mas ao ver as pessoas que já sabiam do que se tratava dançando e se divertindo, se sentiam convidados a participar também.
A música quebrou o clima de estranhamento, e assim procurei trazer para as imagens a proposta muito interessante do La Rica de descontração e divertimento.
Vocês poderiam fazer um balanço desses quatro anos de produção, pensando na interação de cada público e sua empatia com as ações?
Ícaro: O projeto La Rica começou um pouco aberto. Tínhamos o desejo da intervenção e da diversão. Este foi um dos únicos pontos claros, deveríamos nos divertir, e assim os outros também ficariam à vontade e interagiriam conosco. Para dar o passo inicial definimos algumas diretrizes: não deveríamos depender de público. Deveríamos ser um anexo. Uma espécie de parasita. Um bom parasita, que fique claro. Percebemos que para que um ambiente fique familiar duas coisas são imprescindíveis: música e comida. A música funciona também como objeto delimitador de espaço. A fronteira.
Com o passar do tempo foi ficando clara nossa intenção/direção. Entendemos melhor como agradar o nosso público incidental e como agir de forma que todos gostassem, não só os amigos. Quem sempre, sempre e sempre interagiu de forma aberta conosco foram os mendigos e as crianças. Virou uma espécie de marca nossa. Nós saímos do nosso contexto, vamos a Niterói, no terminal e lá estão eles. Fica muito claro nos registros.
Tivemos certo cuidado com a escolha dos locais. Que fossem preferencialmente populares. Isso ajudou bastante. Nesses locais a troca é mais fácil. Os populares nos veem com uma boa curiosidade.
Agora, por mais que mudemos de formato, estamos bem definidos. Somos um soundsystem.
André: O mais importante nas intervenções propostas pelo La Rica é mesmo esse sentido de integração que a ocupação sem hierarquia proporciona com a "paisagem" ao redor do que está sendo proposto pela música/comida, que são oferecidas sempre de graça.
A partir de um determinado momento (e isso sempre acaba acontecendo), a exterioridade passa a ser aglutinada por esse organismo dinâmico que as intervenções propõem: sem código de conduta ou vestimenta, de atitude ou de qualquer outra leitura pré-condicionada por quesitos sociais, culturais ou econômicos. O sentido aparentemente "anárquico", na verdade, flerta mais com a integração indiferenciada do que com a hierarquização exclusiva.
De certa forma é um resgate da origem de toda a cultura sonora originada nos soundsystems jamaicanos, que propunha essa diversão sem o que hoje habitualmente vemos ser cobrado nas boates e bailes – como se o fato de alguma coisa ser paga ou hypada como a onda do momento fizesse que ela fosse melhor do que uma diversão que pode ser usufruída gratuitamente. O "estranhamento" a que você se refere talvez venha daí, de que não estamos fazendo clubinhos ou festinhas particulares para ninguém, portanto estamos sujeitos à mesma imprevisibilidade de como a intervenção irá se desenrolar, e nesse sentido até agora temos sido (e feito) todos muito felizes.
O La Rica só tem sentido nesse limite tênue entre o que propomos "aleatoriamente" e como isso é absorvido (ou não) pelo público, que nunca é só espectador, mas principalmente participante.
Maíza: O La Rica faz uma grande brincadeira no espaço público e nessa brincadeira falamos de coisas sérias. Transformamos os lugares de nossas ações em uma grande sala de estar. Acho que o estranhamento de que a Bia fala deve-se ao fato do La Rica transformar o espaço público em um espaço íntimo. Reunimos os amigos, convidamos os transeuntes para dançar, comer e se divertir nas ruas, praças, feiras, ou mesmo em um ônibus, como foi a nossa última ação. Foi muito bacana ver as pessoas pegarem o ônibus na Praça XV e lá dentro encontrar uma grande festa com música, comida e muita diversão.
Sempre temos a preocupação de entrar na fluidez da cidade com sutilezas e cuidados, nos preocupamos com as músicas, com a comida oferecida e mesmo com a identidade visual dos "uniformes" das ações. Nesse sentido, temos consciência das várias identidades que o espaço da cidade pode ter e assim fazermos uma arte realmente participativa.
No último La Rica nos vestimos de motoristas e cobradores para sermos na verdade DJs e produtores de uma festa. Acho bacana essa brincadeira estética. Nos vestimos de feirantes não para vender frutas e legumes, e sim para colocar música para as pessoas fazerem feira.
Acredito que as nossas ações dialogam muito bem com o turbilhão de informações sensoriais que já existe na cidade, tudo que fazemos já existe no universo urbano, os camelôs fazem ações muito parecidas com as que nós fazemos no La Rica, talvez a grande diferença entre nós e o camelô é que nós não somos camelôs, e nesse sentido podemos brincar de camelô, e assim criar as representações do La Rica na vida cotidiana.
Thais: Eu acho que em vários aspectos o que o La Rica faz é uma coisa natural – em termos de festa. Todos os dias passamos por várias situações "La Rica" nas ruas do centro do Rio – churrasquinho, um aparelho de som tocando hits. Parar nesses lariquinhas proporciona, na maior parte das vezes, situações completamente inusitadas e originais. Então, pra mim, o bacana de todas essas festas que fizemos foi viver os dois lados da situação – fazer a festa e estar nela, assim como as pessoas que pintam no La Rica complementando com ideias e coisas parecem estar fazendo o La Rica também, e estão.
Agora, quanto a fazer um balanço, um dos La Ricas preferido para mim foi o da Independência, em 7 de setembro de 2008. Além da festa e de todas as propostas terem dado supercerto, foi tudo muito divertido, aconteceu um "imprevisto" especial. Com a chegada da polícia, percebi uma sutileza de risco da situação que criamos. Porque o fato de a rua ser e não ser um "território" livre, permite que situações "tensas" ocorram revelando vários lados, vários pontos de vista de acordo com quem olha. E foi interessante perceber isso através do La Rica. Parece que esse La Rica, com o nome de Independência – ainda por cima – esticou um pouco os limites. A situação foi a seguinte: as pessoas de um edifício na Glória (Rua da Glória, na esquina que é o ponto dos travestis) reclamaram do barulho e chamaram a polícia. A polícia chegou, os la ricas pediram para apresentar a última atração e então encerraríamos a festa. Só que a última apresentação, seguinte ao show da MC Xuparina que já tinha sido bombástico, era do Solange Tô Aberta, que começou cantando Fuder Freud (não sei qual é o nome dessa música). O polícia – que bebia uma cervejinha para relaxar oferecida pelo André Amaral com muita ironia – sentiu-se completamente insultado, mas teve que sustentar aquilo até o fim. E a galera soltou a franga com o show, foi quase uma catarse libertária liderada pela situação toda.
Para este trabalho no Terminal Rodoviário João Goulart o La Rica propôs uma viagem de ônibus, do Rio para Niterói, na linha 100, que aliás é a grande companheira dos niteroienses pelas madrugadas cariocas – já faz parte da cultura local! (risos). Enfim, achei muito bacana essa sacada de fazer do trajeto de uma cidade a outra parte importante do trabalho, o que também proporcionou a fácil adesão de um público de artistas cariocas. Bacana também foi a possibilidade de veicular o vídeo do La Rica nas TVs que funcionam como espaços publicitários para o Terminal. Com isso a intervenção se fez presente naquele ambiente durante todo o dia.
Como é esse processo de criação entre vocês, tendo em vista que os dois elementos essenciais para o trabalho do La Rica são a música (o soundsystem), que proporciona o clima de festa, e a consciência de propor um diálogo com um contexto específico?
Ícaro: O processo de criação é aleatório: ele surge. De repente alguém tem uma sacada e puxa a cordinha. Daí para frente são séries de reuniões nos lugares mais díspares possíveis. Está bem claro que eu e André comandamos o som. De certa forma todo o resto é definido em conjunto, cada um puxando mais a brasa pro seu lado. André tem formação em artes, eu em design, Thais em antropologia e artes e Maíza é nossa geógrafa de plantão. É muito bom sermos assim, uma esquizofrenia criativa.
O som sempre vem alinhado com o contexto para agregar, não chocar. Na feira da Glória colocamos sons tranquilos, uns mantras para abrir os trabalhos às 8 da manhã seguidos de lindos sambalanços. No Morro dos Tabajaras optamos por usar uns funks e uns hip hops em português. Assim fica mais fácil do público local entrar no nosso trabalho.
André: Mesmo dentro da aleatoriedade inicial, alguma coisa em nosso processo criativo acaba dando certo por tentarmos sempre reverberar algum tipo de ideia ou de associação com o local onde o trabalho está sendo proposto, através da seleção sonora, da identidade visual que renovamos a cada trabalho, nossas roupas, a escolha da comida etc. Isso acaba criando uma identificação inicial com esse contexto do inesperado a que estamos sujeitos quando estamos na rua, mais no sentido da simbiose do que do parasitismo citado pelo Ícaro.
O que acontece depois desse pontapé inicial não está condicionado por um roteiro, já que o trabalho propõe essa liberdade e liberalidade de se usufruir/participar/compreender como cada um quiser, e por isso justamente o formato é difícil de ser transposto como ação para dentro de uma galeria ou de uma festa paga. No final, o que nos resta é esse produto imponderável gerado pelos registros do que aconteceu no dia da intervenção, e é o que vira o resultado do trabalho em si, criado coletivamente por nós e pelos participantes. Isso é a tal "interatividade do espectador", "obra aberta", "obra participativa" que se discute tanto no contexto da arte.
Maíza: Como somos quatro pessoas no La Rica, temos sempre um imenso arquivo de ideias para as ações do coletivo. Já tínhamos em mente fazer uma ação em um ônibus. Com a proposta de participarmos no evento de comemoração do aniversário de Niterói, naturalmente veio o nome La Rica Móvel. Este ônibus seria o 100, teríamos uma vendedora de amendoim, em formato de cone, para distribuir para os passageiros, nos vestiríamos com uniformes de motorista e cobrador de ônibus, levaríamos os amigos artistas para Niterói e entraríamos na rotina dos passageiros do ônibus. E o mais legal foi ter tudo registrado e projetado no terminal de ônibus de Niterói, local em que diariamente circulam milhares de pessoas. Ou seja, uma ideia foi dialogando com a outra perfeitamente.
Sinto que o La Rica está chegando a uma maturidade conceitual e estética, e também que esta maturidade nos aproxima do mais simples e cotidiano. Nesse sentido estamos fazendo uma arte para ser entendida e decodificada por todos.
Thais: Esse La Rica do Sesc, para mim, também foi muito interessante porque tinha aspectos mais elaborados de participação do público. Também foi um evento em que tivemos que pensar como criar uma interação, o que fizemos com as projeções de dentro do ônibus no terminal, para que não ficássemos restritos apenas a quem estava no busão.
A ideia de convidar a Brenda para uma parceria com o La Rica surgiu a partir de sua série fotográfica Bailarinas do Apocalipse, em que ela cria e dirige cenas surrealistas de dois artistas cariocas. O clima inusitado das fotos e a autenticidade dos personagens foram fundamentais para reforçar minha vontade de registros mais autorais das intervenções públicas por parte dos fotógrafos. Sem contar que a ironia e o incomum têm muito que a ver com o La Rica. Queria saber como foi a construção imaginária, por parte da Brenda, desses personagens vindos do universo rodoviário, e como foi para o coletivo ter em conta esse fator – inédito em sua trajetória – de uma ação que se desdobrará em exposição?
Maíza: A Brenda, desde o inicio, fez questão de participar do nosso processo criativo, participou de vários encontros nossos, não como uma antropóloga investigativa, e sim como mais uma artista a fim de realmente estabelecer uma parceria e um diálogo com o trabalho do La Rica. Em vários momentos percebia que ela era mais uma de nós. Conhecia o trabalho dela e sabia que o registro dessa nossa primeira exposição estaria em boas mãos.
Thais: Conheci o trabalho da Brenda, como fotógrafa, com essa série das bailarinas do apocalipse, e, sem rasgação de seda, adorei demais. Sinceramente, a Bia também merece elogios, e todo nosso amor, pois como curadora permite que façamos alguns La Ricas "mais profissionais", além de dar ideias como essa da parceria com a Brenda. Mais do que registro, sabíamos que a Brenda estaria criando ali uma história. Isso de fato aconteceu, e percebemos quando vimos as fotos dela. Percebemos que as situações que ela viu fizeram o La Rica "100" ficar mais interessante. A sintonia foi total e acho que as pessoas vão poder perceber isso. E escolhemos sequências de fotos, porque estava impossível escolher fotos isoladas diante de um material tão bacana. Para mim, ver a exposição com fotos dela é uma parte outra da intervenção, é a intervenção da Brenda no La Rica! E por fim, gostaria de agradecer ao Guga Ferraz, que fez os filminhos durante a viagem.
Brenda: Tentei registrar a espontaneidade do coletivo La Rica e a interação das pessoas que estavam tanto no ônibus como no terminal rodoviário ao ver, ouvir e degustar tudo que era oferecido.
O fato dos quatro membros do coletivo estarem identificados com um uniforme semelhante ao que usam motoristas e cobradores de ônibus enriqueceu esteticamente as imagens e todos que entravam no ônibus, sem aviso prévio, se deparavam com uma verdadeira festa.
Os passageiros e transeuntes do terminal inicialmente pareciam intrigados com o que acontecia, mas ao ver as pessoas que já sabiam do que se tratava dançando e se divertindo, se sentiam convidados a participar também.
A música quebrou o clima de estranhamento, e assim procurei trazer para as imagens a proposta muito interessante do La Rica de descontração e divertimento.
conversa com bruno jacomino e rafael adorján
Sua formação é em escultura e sua curiosidade se encontra no campo da eletrônica e da mecânica. Essas são nítidas linhas investigativas em seu trabalho, que possui como caminho de comunicação com o público a experimentação do som. Em grande parte de sua produção o encontro dessas influências proporciona a construção (real ou imaginária) de um outro lugar. Para mim, fica muito visível também a maneira como você instiga a percepção do sentir (ouvir/ver) enquanto matéria palpável. Quando te ouço falar sobre a onipresença do som, imagino instantaneamente como é louco o acordo estabelecido entre o escutar e o ouvir: uma ação não acontece sem a outra, ao mesmo tempo em que se mantêm autônomas.
Como você lida com essa sua necessidade em esculpir espaços e desconstruir o som?
Bruno: Não saberia te responder objetivamente se o que realizo é ou não necessidade ou necessariamente escultórico, mas me agrada a percepção de um trabalho fronteiriço, entre iniciais e limitações, seja sensível ou territorial... Entre o mar e a terra firme (risos)... Entre o vulcão e a água de coco. A realidade imaginada, os filmes “videográficos” e livros dos anos 1980, mostravam um futurismo apocalíptico, como “Fuga em New York”, “Akira”, ou primórdios da robotização, o que se imaginava, o ciborgue, o corpo cirbortizado, como em Neuromancer, Count Zero, sei lá Robocop, Blade Runner, (o fliperama, o atari até os jogos em rede de hoje), a eletrônica popular as revistinhas de eletrônica. De forma lúdica era possível aprender a construir coisas com circuitos “hardware lúdico” e os vídeos-games convertiam visualmente eletricidade em gráficos visuais. As salas de imersão dos jogos eletrônicos, pretendia criar um mundo tridimensional escrito em zeros e uns o “real e o imaginário fantástico” se confundindo, se misturando... Mas apesar dos gráficos dessa época serem toscos eram interpretados, e as sensações eram “as mesmas”. Nos anos 80 se pôde experimentar o futuro anunciando décadas anteriores e vivenciar com mais rapidez os anúncios tecnológicos do futuro, o bum dos X.86, os computados domésticos, lembra? Era caríssimo aqui, eu acompanhei mesmo através de amigos que tinham grana pra ter um computador, nem tinha grana e nem alguém na família que considerasse o investimento importante, nem os bancos tinham essa tecnologia, os norte americanos e os japoneses projetavam tecnologias que chegavam por aqui já obsoletas... guerra fria um mundo subdividido, nós, digo nós habitantes desse planeta “tínhamos armamentos” para destruir o planeta terra (assistíamos os avanços capitalistas, haha! que merda... éramos todos capitalistas, haha! A união soviética era do mau, haha, como ilustravam os HQs... ) a guerra era nas estrelas e a catástrofe seria cósmica, enfim, tudo era fantástico, ficção-científica se misturavam com os acontecimentos e por aí vai. A arte se apropriava dessa estética, a esteira capitalista (muito dinheiro), e o mundo era dividido.
Enfim, isso tudo pra falar dos sentidos, da interferência eletrônica, da internet e da influência que o vídeo, a tv, o cinema, a tecnologia, a nova física /quântica/ciência se misturaram à vida cotidiana... A revolução dos transistores anteriormente, hoje a internet, um mundo...isso tudo passou, a instabilidade mundial já não é mais tão crítica, virou história e formaram-se idéias de mundo e até, mais a fundo, consciência de mundo influenciadas pela produção vídeográfica, etc. Fico otimista quando desmitifica-se a tecnologia, descolada da indústria, sem interesse industriais ou fins. Uma novo maneira um novo jeito de lidar com a tecnologia, existe aí uma aura mística, uma nova contemplação, somos seres “tecnológicos” por natureza... O circuito, a eletrônica (meu avô construía rádio, mas não o conheci) por onde passa esse fluxo isso tudo, tem um ritmo, é música e naturalmente humano, a comunicação, a informação, a freqüência de tudo isso, a audição, sua tridimensionalidade... O som ocupa o vazio ou pode ser colorido, a memória, construir memória, isso é fascinante... Uso o som mais como os cineastas e gosto de fazer música, acho que é por aí...
Em Jurujuba, você propôs um deslocamento do olhar através de um mirante de três metros de altura. Uma paisagem belíssima apreciada de um novo ângulo. Ao subir naquela estrutura inesperada dentro d’água - tão despropositada quanto engraçada (quase como uma cena de filme de David Lynch) - percebia-se que o deslocamento sugerido era de outra ordem. Dois capacetes e uma câmera de vídeo possibilitavam perceber a paisagem através do sentido da audição. Na verdade, mais do que isso, funcionavam como meios para a construção de paisagens auditivas, mesmo quando eram regidas pelo silêncio absoluto.
Confesso, enquanto público, que a sensação que tive ao vivenciar o trabalho foi a de, literalmente, entrar em outra freqüência dos sentidos. Maravilhamento total! (risos).
Você me contou que se inspirou na estrutura do Haikai para a elaboração deste trabalho. Poderia falar um pouco sobre essa influência na obra?
Bruno: Marivilhamento total! Que bom... Ver as pessoas subindo aquela escada e não querendo descer, será que tiveram a mesma reação (risos).
Estivemos lá dias antes e o mar estava coberto de peixe morto, peixe na areia, catástrofe mesmo, cheirava mal, era um lugar feio, porem no dia da construção do trabalho, estava tudo bem diferente, o sol, a areia estava mais branca. Essa coisa dos sentidos, a percepção...o maravilhamento é o corpo todo, é bom saber das sensações, é achar caminho para o que chamamos de espírito, é freqüência, depende do lugar, do clima, luz, temperatura, memórias. O despropositado, o repentino, é engraçado. Pude presenciar as reações, enquanto estabelecidas outros formas comunicativas, construindo pontes e conexões associativas. Gosto da estrutura do haikai e do cinema... Bem citei alguns filmes acima e esqueci de citar Dune – de Lynch - que gosto e é dá mesma época a que me referia... O haikai, sua estrutura de três versos, rápida, me serviu como piloto para realizar o trabalho. Algumas coincidências pareciam mensagens, tinha poesia, como haikais. Essas mensagens materializaram o trabalho. A câmera acoplada no capacete captava imagens enquanto o olhar percorria a paisagem. Eu queria trabalhar com o capacete, mas não sabia como seria esse capacete. O mirante a mesma coisa, mas as respostas vieram em forma de haikais no caminho entre Rio/Niterói... Pontes, platores e plataformas, o porto. O som parece catalisar esses elementos que vou escolhendo.
Rafael: Eu não tinha muita idéia de como o mirante ia ficar, até me deparar com ele pronto. E assim que o avistei, entendi tudo. O que era uma algo que soava abstrato, se transformou em realidade. Tipo: “sim, é possível”. Logo de cara deu pra notar que aquela construção por si, já causaria um impacto real naquele ambiente.
A cena formada do mirante à beira mar, gerou essa atmosfera cinematográfica nonsense a que você se refere, transformando o local prosaico em uma paisagem temporária inusitada. Paisagem esta que gerava uma forte curiosidade. Aos poucos, as pessoas subiram e fizeram a experiência ficar completa, porque ali tinhamos a questão da imagem e também do som. A união desses elementos também criou um ambiente lúdico, principalmente por causa da utilização dos capacetes coloridos, fones, abafadores, que eram condicionais para completude da experiência. Já o haikai, acho que tem a ver com a idéia oriental de contemplação, meditação, e sobretudo, simplicidade, de unir elementos fundamentais, mas de uma maneira sucinta, acessível e bem resolvida. A questão de mirar uma paisagem já nos remete a essa história. Não estamos só vendo, estamos contemplando...
A parceria entre artista e fotógrafo foi levada tão a sério por vocês dois, que antes mesmo de realizar a intervenção o trabalho já estava acontecendo. O processo de reconhecimento do lugar, a interação com freqüentadores daquela praia e a pesquisa de imagens foram defendidas como partes essenciais do trabalho. A atenção cuidadosa com o momento seguinte ao da intervenção, condizente com a proposta curatorial de pensar uma exposição sobre ações públicas que não fosse calcada no simples registro visual, foi um fator determinante para a perfeita afinação entre os trabalhos dos dois.
Queria ouvir de vocês como, de fato, absorveram a idéia de parceria e colaboração e como conseguiram essa organicidade entre os diferentes resultados visuais de um mesmo trabalho?
Bruno: Os locais foram propostos para cada artista, bem diferente da situação criada para um “Tilted Arc”(Richard Serra) por exemplo, onde ele mesmo propõe a instalação de uma peça gigantesca de aço para uma praça especifica, para ocupar exatamente aquele lugar ( isso lá pelos anos 80 também), além do que era para ser “permanente”, enfim...aqui tem a duração de algumas horas, fica algo meio “místico”, não é?...e na concepção... as idéias foram fluindo na medida em que as experiências foram se desenvolvendo. Tudo foi surgindo sem a preocupação se havia ou não possibilidade de realização. Íamos compilando o que ia surgindo. Nada foi pensado anteriormente, tudo foi se desenrolando com o tempo e o tempo individual, o difícil era coincidir as agendas!
Dividimos ateliê já há um bom tempo, acho que isso influenciou bastante também para que o trabalho fosse como foi, que desenvolvêssemos juntos e que os encontros não se restringissem só ao dia da ação. Desde o Vila Longuinhos, que era o ateliê que tínhamos no Morro da Conceição, com mais cinco artistas (no final acho que tinha mais gente até), tínhamos vontade de realizar algo juntos e a oportunidade veio da melhor forma. Temos o interesse pela imagem em comum. Rafael trabalha mais diretamente com a fotografia, o que me fez pensar mais em criar uma situação para o enquadramento, a espacialidade, os véus da imagem e vice-versa.
Rafael: A questão é sutil. O trabalho começa a ser feito a partir do momento em que nos encontramos, mesmo que dali não saia nada definido, idéias começam a ser trocadas, e a coisa vai tendo seus desdobramentos. Vale lembrar que ainda dividimos um ateliê, que é um espaço de convivência, o que facilita as coisas. Ter feito essa espécie de mapeamento do local foi importante, porque além de ser um reconhecimento do local da intervenção, também estávamos ali interessados em nos relacionar com as pessoas para que elas tivessem alguma idéia de que algo “diferente”seria feito ali. Como não nos conheciam, achavam que eramos da imprensa, e estavamos ali para fazer alguma espécie de reportagem de denúncia. Mas esse também foi o mote para as pessoas se aproximarem e iniciarem uma conversa, daí conversavamos sobre o que iriamos fazer. No dia da ação, já não eramos totalmente estranhos naquele local e várias pessoas já nos reconheciam e ajudaram na realização do trabalho. Depois, foram lá tirar a prova dos nove, e subiram no mirante. Ou seja, mesmo sem saber direito, as pessoas entraram no clima porque só subindo para ter noção plena do que se tratava. Em relação à parceria, o trabalho pedia uma pedia uma participação conjunta maior. Tinhamos e estamos tendo que pensar e solucionar coisas juntos, o que já vai além do mero registro fotográfico.
Como você lida com essa sua necessidade em esculpir espaços e desconstruir o som?
Bruno: Não saberia te responder objetivamente se o que realizo é ou não necessidade ou necessariamente escultórico, mas me agrada a percepção de um trabalho fronteiriço, entre iniciais e limitações, seja sensível ou territorial... Entre o mar e a terra firme (risos)... Entre o vulcão e a água de coco. A realidade imaginada, os filmes “videográficos” e livros dos anos 1980, mostravam um futurismo apocalíptico, como “Fuga em New York”, “Akira”, ou primórdios da robotização, o que se imaginava, o ciborgue, o corpo cirbortizado, como em Neuromancer, Count Zero, sei lá Robocop, Blade Runner, (o fliperama, o atari até os jogos em rede de hoje), a eletrônica popular as revistinhas de eletrônica. De forma lúdica era possível aprender a construir coisas com circuitos “hardware lúdico” e os vídeos-games convertiam visualmente eletricidade em gráficos visuais. As salas de imersão dos jogos eletrônicos, pretendia criar um mundo tridimensional escrito em zeros e uns o “real e o imaginário fantástico” se confundindo, se misturando... Mas apesar dos gráficos dessa época serem toscos eram interpretados, e as sensações eram “as mesmas”. Nos anos 80 se pôde experimentar o futuro anunciando décadas anteriores e vivenciar com mais rapidez os anúncios tecnológicos do futuro, o bum dos X.86, os computados domésticos, lembra? Era caríssimo aqui, eu acompanhei mesmo através de amigos que tinham grana pra ter um computador, nem tinha grana e nem alguém na família que considerasse o investimento importante, nem os bancos tinham essa tecnologia, os norte americanos e os japoneses projetavam tecnologias que chegavam por aqui já obsoletas... guerra fria um mundo subdividido, nós, digo nós habitantes desse planeta “tínhamos armamentos” para destruir o planeta terra (assistíamos os avanços capitalistas, haha! que merda... éramos todos capitalistas, haha! A união soviética era do mau, haha, como ilustravam os HQs... ) a guerra era nas estrelas e a catástrofe seria cósmica, enfim, tudo era fantástico, ficção-científica se misturavam com os acontecimentos e por aí vai. A arte se apropriava dessa estética, a esteira capitalista (muito dinheiro), e o mundo era dividido.
Enfim, isso tudo pra falar dos sentidos, da interferência eletrônica, da internet e da influência que o vídeo, a tv, o cinema, a tecnologia, a nova física /quântica/ciência se misturaram à vida cotidiana... A revolução dos transistores anteriormente, hoje a internet, um mundo...isso tudo passou, a instabilidade mundial já não é mais tão crítica, virou história e formaram-se idéias de mundo e até, mais a fundo, consciência de mundo influenciadas pela produção vídeográfica, etc. Fico otimista quando desmitifica-se a tecnologia, descolada da indústria, sem interesse industriais ou fins. Uma novo maneira um novo jeito de lidar com a tecnologia, existe aí uma aura mística, uma nova contemplação, somos seres “tecnológicos” por natureza... O circuito, a eletrônica (meu avô construía rádio, mas não o conheci) por onde passa esse fluxo isso tudo, tem um ritmo, é música e naturalmente humano, a comunicação, a informação, a freqüência de tudo isso, a audição, sua tridimensionalidade... O som ocupa o vazio ou pode ser colorido, a memória, construir memória, isso é fascinante... Uso o som mais como os cineastas e gosto de fazer música, acho que é por aí...
Em Jurujuba, você propôs um deslocamento do olhar através de um mirante de três metros de altura. Uma paisagem belíssima apreciada de um novo ângulo. Ao subir naquela estrutura inesperada dentro d’água - tão despropositada quanto engraçada (quase como uma cena de filme de David Lynch) - percebia-se que o deslocamento sugerido era de outra ordem. Dois capacetes e uma câmera de vídeo possibilitavam perceber a paisagem através do sentido da audição. Na verdade, mais do que isso, funcionavam como meios para a construção de paisagens auditivas, mesmo quando eram regidas pelo silêncio absoluto.
Confesso, enquanto público, que a sensação que tive ao vivenciar o trabalho foi a de, literalmente, entrar em outra freqüência dos sentidos. Maravilhamento total! (risos).
Você me contou que se inspirou na estrutura do Haikai para a elaboração deste trabalho. Poderia falar um pouco sobre essa influência na obra?
Bruno: Marivilhamento total! Que bom... Ver as pessoas subindo aquela escada e não querendo descer, será que tiveram a mesma reação (risos).
Estivemos lá dias antes e o mar estava coberto de peixe morto, peixe na areia, catástrofe mesmo, cheirava mal, era um lugar feio, porem no dia da construção do trabalho, estava tudo bem diferente, o sol, a areia estava mais branca. Essa coisa dos sentidos, a percepção...o maravilhamento é o corpo todo, é bom saber das sensações, é achar caminho para o que chamamos de espírito, é freqüência, depende do lugar, do clima, luz, temperatura, memórias. O despropositado, o repentino, é engraçado. Pude presenciar as reações, enquanto estabelecidas outros formas comunicativas, construindo pontes e conexões associativas. Gosto da estrutura do haikai e do cinema... Bem citei alguns filmes acima e esqueci de citar Dune – de Lynch - que gosto e é dá mesma época a que me referia... O haikai, sua estrutura de três versos, rápida, me serviu como piloto para realizar o trabalho. Algumas coincidências pareciam mensagens, tinha poesia, como haikais. Essas mensagens materializaram o trabalho. A câmera acoplada no capacete captava imagens enquanto o olhar percorria a paisagem. Eu queria trabalhar com o capacete, mas não sabia como seria esse capacete. O mirante a mesma coisa, mas as respostas vieram em forma de haikais no caminho entre Rio/Niterói... Pontes, platores e plataformas, o porto. O som parece catalisar esses elementos que vou escolhendo.
Rafael: Eu não tinha muita idéia de como o mirante ia ficar, até me deparar com ele pronto. E assim que o avistei, entendi tudo. O que era uma algo que soava abstrato, se transformou em realidade. Tipo: “sim, é possível”. Logo de cara deu pra notar que aquela construção por si, já causaria um impacto real naquele ambiente.
A cena formada do mirante à beira mar, gerou essa atmosfera cinematográfica nonsense a que você se refere, transformando o local prosaico em uma paisagem temporária inusitada. Paisagem esta que gerava uma forte curiosidade. Aos poucos, as pessoas subiram e fizeram a experiência ficar completa, porque ali tinhamos a questão da imagem e também do som. A união desses elementos também criou um ambiente lúdico, principalmente por causa da utilização dos capacetes coloridos, fones, abafadores, que eram condicionais para completude da experiência. Já o haikai, acho que tem a ver com a idéia oriental de contemplação, meditação, e sobretudo, simplicidade, de unir elementos fundamentais, mas de uma maneira sucinta, acessível e bem resolvida. A questão de mirar uma paisagem já nos remete a essa história. Não estamos só vendo, estamos contemplando...
A parceria entre artista e fotógrafo foi levada tão a sério por vocês dois, que antes mesmo de realizar a intervenção o trabalho já estava acontecendo. O processo de reconhecimento do lugar, a interação com freqüentadores daquela praia e a pesquisa de imagens foram defendidas como partes essenciais do trabalho. A atenção cuidadosa com o momento seguinte ao da intervenção, condizente com a proposta curatorial de pensar uma exposição sobre ações públicas que não fosse calcada no simples registro visual, foi um fator determinante para a perfeita afinação entre os trabalhos dos dois.
Queria ouvir de vocês como, de fato, absorveram a idéia de parceria e colaboração e como conseguiram essa organicidade entre os diferentes resultados visuais de um mesmo trabalho?
Bruno: Os locais foram propostos para cada artista, bem diferente da situação criada para um “Tilted Arc”(Richard Serra) por exemplo, onde ele mesmo propõe a instalação de uma peça gigantesca de aço para uma praça especifica, para ocupar exatamente aquele lugar ( isso lá pelos anos 80 também), além do que era para ser “permanente”, enfim...aqui tem a duração de algumas horas, fica algo meio “místico”, não é?...e na concepção... as idéias foram fluindo na medida em que as experiências foram se desenvolvendo. Tudo foi surgindo sem a preocupação se havia ou não possibilidade de realização. Íamos compilando o que ia surgindo. Nada foi pensado anteriormente, tudo foi se desenrolando com o tempo e o tempo individual, o difícil era coincidir as agendas!
Dividimos ateliê já há um bom tempo, acho que isso influenciou bastante também para que o trabalho fosse como foi, que desenvolvêssemos juntos e que os encontros não se restringissem só ao dia da ação. Desde o Vila Longuinhos, que era o ateliê que tínhamos no Morro da Conceição, com mais cinco artistas (no final acho que tinha mais gente até), tínhamos vontade de realizar algo juntos e a oportunidade veio da melhor forma. Temos o interesse pela imagem em comum. Rafael trabalha mais diretamente com a fotografia, o que me fez pensar mais em criar uma situação para o enquadramento, a espacialidade, os véus da imagem e vice-versa.
Rafael: A questão é sutil. O trabalho começa a ser feito a partir do momento em que nos encontramos, mesmo que dali não saia nada definido, idéias começam a ser trocadas, e a coisa vai tendo seus desdobramentos. Vale lembrar que ainda dividimos um ateliê, que é um espaço de convivência, o que facilita as coisas. Ter feito essa espécie de mapeamento do local foi importante, porque além de ser um reconhecimento do local da intervenção, também estávamos ali interessados em nos relacionar com as pessoas para que elas tivessem alguma idéia de que algo “diferente”seria feito ali. Como não nos conheciam, achavam que eramos da imprensa, e estavamos ali para fazer alguma espécie de reportagem de denúncia. Mas esse também foi o mote para as pessoas se aproximarem e iniciarem uma conversa, daí conversavamos sobre o que iriamos fazer. No dia da ação, já não eramos totalmente estranhos naquele local e várias pessoas já nos reconheciam e ajudaram na realização do trabalho. Depois, foram lá tirar a prova dos nove, e subiram no mirante. Ou seja, mesmo sem saber direito, as pessoas entraram no clima porque só subindo para ter noção plena do que se tratava. Em relação à parceria, o trabalho pedia uma pedia uma participação conjunta maior. Tinhamos e estamos tendo que pensar e solucionar coisas juntos, o que já vai além do mero registro fotográfico.
Assinar:
Postagens (Atom)