22 de mai. de 2010

conversa com gabriela Mureb e joana csekö

Sua produção artística caminha por duas linhas de investigação: a performance e a pesquisa com plantas. Em ambas a exaustão dos corpos se apresenta como o foco de interesse. Nas ações que propõe, seu corpo é submetido ao limite do esgotamento, sendo o auge do trabalho a desistência da ação. Já nas experiências com plantas, ao cortá-las, costurá-las ou amarrá-las você toca em questões essenciais da vida, como o impedimento de se prosseguir em um percurso ou a possibilidade de realizá-lo de outra maneira.
Qual é a relação, definida por você, entre esses dois caminhos em sua produção?


Gabriela: Ainda estou pensando na relação entre esses trabalhos... Mas poderia dizer que estou lidando com limitações. Há, em ambos os casos, tensão, desconforto e uma tentativa de forçar limites inevitáveis, talvez uma negação do percurso natural das coisas.
Tanto nas performances quanto nos trabalhos com plantas vejo algo como uma insistência em lutar uma luta já perdida, em tentar realizar ações impossíveis...
Penso nessa tensão angustiante do esforço máximo, do colocar-se no limite.
Ao mesmo tempo, esses trabalhos também falam de estados emocionais, geralmente relacionados com o processo de sua própria criação, a preocupação com o que se desenha (limita) ali, com as consequências que aquele trabalho trará para o resto da minha produção – toda escolha é também uma limitação. E com a tentativa de fazer um trabalho que esteja no limite, no meu limite, que seja o máximo que eu possa construir naquele momento – o que me mantém nesse “estado de emergência”.


Neste trabalho elaborado para a Praça de São Domingos, durante quase seis horas (você realmente gosta de testar seus limites, né?) você criou uma espécie de mundo paralelo: como uma cientista, extremamente concentrada, dava forma a um novo ser. Costurando e amarrando partes de diferentes plantas em um caule dentro de um vaso, uma pequena árvore mutante (um monstrinho vegetal) era construída no centro da Praça, que no dia estava lotada de gente. O público observava a experiência, suas ferramentas, o livro de botânica, as câmeras que registravam toda a ação e sua dedicação. Uma coisa que me chamou a atenção foi a dicotomia entre a extrema beleza das plantas escolhidas para o trabalho e a agressão do ato de retalhar um ser vivo ou qualquer coisa que seja. Quando você quis torturar as miniplantas carnívoras amarrando formigas numa linha para impossibilitar que elas digerissem o inseto, foi algo curioso... Lembrei que fazia coisas parecidas quando era criança! Um sadismo infantil! (risos).
Sabemos que a questão de trabalhar em arte com animais é extremamente polêmica, porém com plantas não me recordo, agora, de nenhum caso de debate eufórico. Você já enfrentou alguma reação crítica a esse trabalho com plantas? Qual é a sua posição com relação a essas “poderosas permissões” instauradas pela arte?


Gabriela: Nunca recebi críticas muito acaloradas, normalmente as pessoas reagem com pena, dizem “tadinhas”, “que maldade”, ou me chamam de perversa. É claro que tenho consciência de que estou cometendo um ato de agressão contra as plantas, mas não sinto prazer em matá-las, e procuro não fazer disso algo gratuito.
Sobre a segunda questão, não vejo as “permissões” ou “proibições” como algo instaurado pela arte. Acho uma questão ética, e a arte não está num terreno neutro. Um artista que assassine alguém num trabalho será um assassino e terá que responder por seus atos. A arte pode ser vil, pode até ser um crime, depende do que se faz dela.
De minha parte, não faria qualquer coisa por um trabalho.


Dentre as intervenções do projeto, o trabalho da Gabriela me pareceu, desde o início, que seria o de maior facilidade em sua logística e realização. Foi também o trabalho de maior interioridade do artista, em que a realização dependia apenas de seus próprios esforços. Por esse motivo a parceria com a Joana não poderia ter sido diferente do que sugestões pontuais, como a de iniciar a performance aproveitando a luz do dia – o que fez toda a diferença na qualidade das fotografias.
Queria saber como vocês pensaram esse transporte da intervenção pública para a galeria, tendo em conta o intuito do projeto Sentido Niterói, de fugir das fórmulas tradicionais para exposições de registros de ações.


Gabriela: A transposição de uma intervenção pública para uma galeria deve tomar o cuidado de não tentar reproduzir o contexto para o qual o trabalho foi criado. Principalmente tratando-se de uma exposição de registros, incapazes de substituir a vivência do acontecimento. Portanto, acredito que os registros devem ser pensados como algo que se baste, e construídos como algo que tenha força para se sustentar independentemente do trabalho que busca registrar.
No caso das performances, é muito comum vermos exposições de registros/vestígios das ações. Dificilmente o resultado é satisfatório – até mesmo como forma de documentação, já que são proposições pensadas para serem vividas. Há também exposições em que as ações são feitas novamente. Os trabalhos não são reproduzidos – trata-se de uma nova experimentação do trabalho a partir de seu roteiro, ou de outra forma de documentação deste.
Porém, muitas vezes o que seria um registro ou vestígio torna-se um novo trabalho, ao mesmo tempo em que reforça o discurso das ações (como os relicários com pedaços da pele de Orlan, retirados em suas famosas cirurgias-performances).
Pensando nisso, preferi levar para a galeria produtos de ações que conseguem separar-se delas e tomar vida própria – não só pelas óbvias transformações que as plantas continuarão sofrendo, mas porque acredito que elas trazem em si a potência de um trabalho autônomo.


Joana: Lidar com o registro de ações que acontecem fora do espaço expositivo tradicional é uma das questões da arte contemporânea. Na medida em que se busca transbordar os lugares feitos para se ver arte, como e por que voltar a estes mesmos lugares, agora com vestígios, com algo que não necessariamente é o trabalho?
Registros facilmente tornam-se subprodutos... Se a arte ganha a rua, quer o fora, por que retornar? O revés da moeda é que, muitas vezes, nesse contrafluxo, subestima-se o espaço expositivo. Uma vez dentro, é mister dialogar com as especificidades desse tipo de espaço, do contrário (e isso é frequente) veem-se exposições frouxas, turvas, desconectadas, que vivem numa espécie de “limbo”. Transpor uma ação que aconteceu na rua para um cubo branco é impossível, creio. É preciso criar algo que informe o que se passou, que seja fiel ao trabalho, mas que, simultaneamente, dentro desse outro/segundo espaço, ganhe autonomia. Ou seja, o que for exposto deve sobreviver por si só entre quatro paredes brancas.
No caso do trabalho de Gabriela Mureb na Praça de São Domingos, tentei registrar não o produto da ação da artista, mas o fazer. Os detalhes das mãos que manipulam desfigurando/refigurando plantas expressam de forma densa e simples a ação proposta. Tornam-se, assim, imagens significantes do trabalho, não ilustrando, mas, antes, sintetizando o que há de essencial nesse processo. A fotografia utiliza-se de sua qualidade indicial para, a partir daí, criar imagens instigantes, que contêm interesse próprio.